“Se observarmos o vôo dos pássaros, estamos na presença de corpos que se movimentam livremente nas três dimensões do espaço, e que assumem atitudes tridimensionais em todos os seus gestos. Não apenas "subir” e “descer” é equivalente ao “para trás”, “para frente”, “para a direita” e “para a esquerda”, mas “inclinar a asa” é equivalente a “virar a esquina”. Estamos na presença de seres que devem tomar, em toda situação dada, decisões entre um número muito maior de alternativas que seres terrenos: as diagonais que se oferecem como caminhos de fuga ou de ataque a pássaro não formam círculos, mas esferas. O pássaro em vôo não é, como o é o animal terrestre, centro de estrutura vital de círculos interferentes, mas de esferas interferentes. As formações de aves em migração obedecem às regras da geometria tridimensional, e o “misterioso” sentido de orientação das aves é misterioso para nós porque se orienta dentro das três dimensões do espaço. “Voar como pássaro” seria poder movimentar-se, decidir-se e organizar-se na tridimensionalidade.
Os animais terrestres, e mais particularmente, o homem, não são inteiramente privados da abertura em direção ao espaço aberto. Mas a “terceira” dimensão não passa de uma série de epiciclos superpostos sobre o plano. os movimentos da pernas, dos pescoços e dos rabos são investidas para dentro da terceira dimensão a partir do plano. E os sentidos, e mais especialmente a vista, são órgãos que recolhem informações vindas das três dimensões sobre um ponto no plano. Para os animais terrestres, inclusive o homem, o espaço é um oceano que a banha a ilha plana que habitam. Daí a semelhança entre pássaro e peixe: ambos são habitantes do oceano-espaço. Pássaros nadam no ar, assim como peixes voam na água. A diferença é que o vôo do pássaro salienta a liberdade do movimento espacial, e o nado do peixe salienta o seu condicionamento. O mito do peixe tem clima diferente do clima do mito do vôo.
O homem de distingue dos demais animais terrestres por sua posição ereta: por ser seu corpo todo investida rumo ao espaço aberto. Tal posição permite ao homem “conquistar o espaço” a partir do plano. (O pássaro não precisa conquistar o espaço, está nele.) Mas a posição ereta humana não resulta na libertação do corpo humano todo em direção ao espaço. Abriu apenas o parâmetro dos movimentos tridimensionais para várias partes do corpo, e possibilitou às mãos a manipulação tridimensional de corpos.
Mãos sãos orgãos especificamente humanos, tornados possíveis graças à postura ereta, que se movimentam no espaço com aproximada liberdade. Mãos vivem em clima estruturalmente semelhante ao clima no qual vivem pássaros em vôo. O pássaro em vôo é mão voadora, mão liberta de corpo, corpo virado mão inteiramente. O movimento da mão é a apreensão, compreensão, concepção e modificação dos corpos “em profundidade”, isto é, no espaço. O mito do vôo é isto: liberdade para apreender, compreender, conceber e modificar em profundidade.“
FLUSSER, Villém. Pássaros (excerto) in Natural:mente - vários acessos aos significados de natureza.